Na terça-feira, 18 de novembro de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou, por ampla maioria, uma emenda que tira o direito de voto de pessoas presas provisoriamente — um movimento inédito na história da redemocratização brasileira. A proposta, apresentada pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), líder do partido no Congresso, foi incorporada ao relatório substitutivo do deputado Guilherme Derrite (PP-SP) e passou com 349 votos a favor, 40 contra e uma abstenção. A mudança altera o PL Antifacção, projeto que busca reforçar o combate ao crime organizado, mas que agora ganha um contorno profundamente político e constitucional.
Um princípio quebrado desde 1988
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o direito ao voto só é suspenso para quem foi condenado com sentença transitada em julgado. Presos provisórios — aqueles que ainda não foram julgados ou estão aguardando recurso — sempre mantiveram o título eleitoral ativo. Em 2024, mais de 6.000 pessoas nessa situação votaram nas eleições municipais, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A emenda aprovada muda isso radicalmente: agora, qualquer pessoa detida, mesmo sem condenação definitiva, será automaticamente cancelada do cadastro eleitoral. O argumento de Van Hattem foi direto: "O voto pressupõe liberdade e autonomia de vontade. E isso não existe na prisão." Ele também citou custos operacionais e riscos de segurança para as equipes eleitorais, que precisam montar seções em unidades prisionais.As contradições da emenda
A proposta enfrenta críticas de juristas e defensores dos direitos humanos. O princípio da presunção de inocência, garantido no artigo 5º da Constituição, é o principal alvo da polêmica. "Não se pune antes de julgar", disse o professor de direito constitucional Carlos Eduardo Pinto, da USP, em entrevista ao O Tempo. "A emenda transforma a prisão provisória em uma pena política, mesmo que temporária. Isso é perigoso." Além disso, o texto da emenda é vago quanto à aplicação. Quem define se alguém é "preso provisório"? A Justiça? A polícia? E se a prisão for por erro? O sistema prisional brasileiro já tem mais de 300 mil pessoas presas sem condenação — quase metade da população carcerária. Tirar o voto delas pode significar, na prática, silenciar uma parte significativa da sociedade que não teve sequer chance de se defender em juízo.
Implicações políticas e o fantasma de Bolsonaro
O timing da aprovação não é casual. O deputado Carla Zambelli (PL-SP) e o ex-presidente Jair Bolsonaro estão atualmente sob prisão preventiva em processos relacionados ao 8 de janeiro. Fontes do Brasil Paralelo sugerem que a emenda foi desenhada, ao menos em parte, para afetar esses dois nomes — e, por extensão, deslegitimar qualquer possível participação política deles no futuro. Van Hattem nega qualquer intenção política, mas o fato de o Novo, partido que se autodefine como liberal e anti-establishment, ter liderado essa mudança, é visto por analistas como um distanciamento estratégico do bolsonarismo.O que vem a seguir: Senado, veto e STF
A emenda agora segue para o Senado Federal, em Brasília, onde enfrentará uma análise constitucional mais rigorosa. O relator do projeto no Senado, senador Renan Calheiros (MDB-AL), já sinalizou que a proposta pode violar cláusulas pétreas. Se aprovada lá, ainda restará o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com o poder de vetar o trecho. Lula, que tem histórico de defesa de direitos civis, já disse em entrevista que "ninguém perde a cidadania por estar preso sem julgamento".Independentemente do que acontecer no Senado ou no Planalto, a medida quase certamente será levada ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2021, o STF já decidiu, por unanimidade, que presos provisórios têm direito ao voto — e o ministro Alexandre de Moraes chegou a afirmar que "o voto é a arma mais poderosa contra a tirania". Ainda que o Congresso insista, o STF tem sido o guardião da Constituição em casos como esse.
Por que isso importa para você
Essa emenda não afeta apenas os presos. Ela redefine o que significa ser cidadão no Brasil. Se a liberdade de voto pode ser retirada por uma decisão administrativa — e não por um julgamento —, onde fica o princípio de que ninguém é culpado até que se prove o contrário? E se, no futuro, alguém for preso por manifestações políticas, por protestos ou por críticas ao governo? O voto deixaria de ser um direito e passaria a ser um privilégio concedido pelo Estado.Na prática, isso pode significar que, em eleições futuras, centenas de milhares de pessoas — muitas delas pobres, negras, marginalizadas — serão excluídas do processo democrático por simplesmente estarem detidas. E isso, sim, é um risco maior do que qualquer custo operacional de uma seção eleitoral em uma prisão.
Frequently Asked Questions
Como a emenda afeta os presos provisórios que já têm título de eleitor?
A emenda obriga o TSE a cancelar automaticamente o título de qualquer pessoa detida, mesmo que ainda não tenha sido julgada. Isso significa que, se alguém for preso na quarta-feira, na sexta-feira seu nome já sai do cadastro eleitoral. Não há prazo de graça nem direito de defesa prévio. A exclusão é imediata e irreversível até que a pessoa seja solta — e mesmo assim, o título não é restituído automaticamente: é preciso recadastrar, o que pode ser difícil para quem sai da prisão sem documentos.
Essa mudança viola a Constituição?
Sim, segundo a maioria dos juristas. A Constituição de 1988 só suspende direitos políticos para quem foi condenado com sentença definitiva. Tirar o voto de quem ainda não foi julgado fere o princípio da presunção de inocência, garantido no artigo 5º. O STF já decidiu isso em 2021, e há precedentes de decisões semelhantes na Corte Interamericana de Direitos Humanos. A emenda, portanto, enfrenta forte risco de ser derrubada pela Justiça.
Por que o Novo liderou essa proposta?
O Novo se apresenta como partido liberal, mas sua liderança na emenda reflete uma estratégia política. Ao se posicionar contra a votação de presos — incluindo figuras como Bolsonaro e Zambelli —, o partido busca se distanciar do bolsonarismo sem perder apoio conservador. É um movimento de redefinição: ao invés de defender a liberdade individual em todos os casos, agora prioriza a segurança e a ordem, mesmo que isso signifique limitar direitos civis. É uma mudança de discurso, não de ideologia.
O que acontece se o Senado aprovar e Lula não vetar?
A lei entrará em vigor, mas será imediatamente contestada no STF. O Tribunal já tem jurisprudência favorável aos presos provisórios, e o ministro Alexandre de Moraes já chamou o voto de "escudo da democracia". É quase certo que a lei será suspensa por liminar e, posteriormente, declarada inconstitucional. O processo pode levar anos, mas o resultado final é previsível: a emenda morrerá na Justiça, mesmo que tenha passado no Congresso.
Quantas pessoas realmente votaram sendo presas provisórias em 2024?
Segundo o TSE, 6.142 pessoas presas provisoriamente votaram nas eleições municipais de 2024. Isso representa apenas 0,02% do total de eleitores, mas é um número significativo em termos simbólicos. A maioria desses eleitores estava presa por crimes menores — tráfico, furto, porte de arma — e muitos nem tinham advogado. A emenda não visa apenas os grandes criminosos, mas qualquer pessoa detida, independentemente da gravidade do caso.
O voto é obrigatório para presos?
Não. O voto é obrigatório apenas para cidadãos alfabetizados entre 18 e 70 anos — e isso inclui os presos provisórios. Mas a obrigatoriedade não implica em poder de voto. A emenda não muda a regra da obrigatoriedade, apenas remove o direito de exercê-la. Ou seja: se aprovada, um preso provisório ainda será obrigado a justificar sua ausência nas eleições, mesmo que não possa votar. Isso cria uma contradição absurda no sistema.