No calendário dos gaúchos, 20 de setembro não é um dia comum: é quando cidades inteiras param para revisitar uma história que, há quase dois séculos, ainda dita costumes, sotaques e gestos. O Dia do Gaúcho é memória, festa e também debate sobre quem somos e como queremos seguir contando essa história.
O que está por trás do Dia do Gaúcho
A data remete ao início da Revolução Farroupilha (1835–1845), conflito que sacudiu o Império do Brasil a partir da então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. O estopim envolveu questões econômicas — como impostos sobre o charque — e o peso do centralismo imperial. Liderado por estancieiros e militares, o levante proclamou a República Rio-Grandense, teve desdobramentos em Santa Catarina e terminou com um acordo em 1845, que selou anistia e a incorporação das tropas rebeldes ao Exército.
O movimento ganhou novas leituras ao longo do século 20. O que nasceu como uma revolta da elite regional virou, na cultura popular, um marco de coragem, lealdade e apego à liberdade. Essa “reinvenção” ajudou a erguer a identidade gaúcha como a conhecemos hoje — com símbolos, rituais e um vocabulário que atravessam gerações.
A Semana Farroupilha, que antecede e culmina no 20 de setembro, é a face mais visível dessa memória viva. Em Porto Alegre e no interior, acampamentos temáticos, piquetes, cavalgadas e desfiles reúnem famílias, escolas, tradicionalistas e curiosos. Não é só celebração: há oficinas de artesanato, rodas de conversa, apresentações de música e dança, e uma gastronomia que vira atração por si só.
O termo “gaúcho”, aliás, não significa a mesma coisa em todo o Prata. Em Argentina e Uruguai, costuma apontar para o trabalhador rural ligado ao gado e à lida no campo. No Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul, o nome abraçou todos os nascidos no estado, do morador da capital ao peão de estância. É um signo identitário que superou a origem ocupacional.
Por trás da festa há uma rede organizada. O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) é o principal articulador dessa cultura no cotidiano. Segundo a entidade, a estrutura soma cerca de dois mil Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) em atividade, espalhados pelo Brasil e também fora do país. Esses núcleos dão aulas de dança, preservam repertórios musicais, estimulam a culinária típica e formam novas gerações de “prendas” e “peões”, as lideranças juvenis do tradicionalismo.
O traje típico — a pilcha — virou patrimônio de uso cotidiano em ocasiões formais. Uma lei estadual reconhece a indumentária como traje de honra no Rio Grande do Sul. No caso masculino, a pilcha reúne bombacha, bota, guaiaca, lenço, camisa, colete e, conforme a ocasião, pala ou poncho. Para as mulheres, vestidos longos, saias com armação (a bombachinha), casacos, meias e sapatos compõem a roupa de prenda. Não é fantasia: é registro histórico e símbolo de pertencimento.
A capital costuma receber grandes desfiles temáticos, enquanto municípios do interior promovem cavalgadas que percorrem longas distâncias — muitas com roteiros que resgatam caminhos de tropeiros e passagens usadas na lida campeira. Escolas entram no clima com projetos pedagógicos, oficinas de história regional, rodas de leitura e apresentações artísticas. O turismo acompanha: hotéis lotam, restaurantes se adaptam ao cardápio típico e o comércio de artigos de couro, cutelaria, cuias e bombachas ganha fôlego.

Símbolos, utensílios e rituais que atravessam gerações
Se há um rito que desenha a sociabilidade gaúcha, ele se chama chimarrão. A bebida feita com erva-mate e água quente, servida na cuia com bomba de metal, gira de mão em mão e cria conversa. É uma prática diária no campo e na cidade, presente em praças, salas de aula, escritórios e acampamentos. Não é só costume: é uma tecnologia social de encontro e troca.
Outro protagonista é o churrasco. No fogo de chão, na grelha ou no espeto, o preparo obedece a rituais que variam de região para região. O sal grosso é quase regra; o corte, assunto de mesa; a espera pelo ponto, parte do prazer. Em grandes eventos, as assadeiras se organizam em mutirão, e cada piquete tem seu jeito de acender brasa e lidar com o vento minuano. Regras de segurança são levadas a sério — especialmente em parques, onde há áreas demarcadas para evitar risco de incêndio.
Na lida campeira, ferramentas viraram símbolos da cultura. Entre os utensílios tradicionais, se destacam:
- Facón: faca de lâmina larga, associada ao trabalho e a cerimônias. Hoje, seu uso em eventos segue normas específicas de segurança e exibição.
- Cuia e bomba: conjunto para o chimarrão, com peças de madeira, porongo ou cerâmica e metais como aço inox e prata.
- Guaiaca: cinto largo de couro que carrega ferramentas e objetos pessoais.
- Laço e boleadeira: instrumentos de manejo do gado, com técnicas próprias passadas de pai para filho — e cada vez mais, de mãe para filha.
- Encilha: o conjunto de arreios do cavalo (sela, pelego, estribo, barrigueira), peça central da cultura de cavalo que moldou o dia a dia da campanha.
- Churrasqueiras, espetos e grelhas: o arsenal do assador, que vai do ferro à madeira, com adaptações urbanas e rústicas.
- Violão e gaita: a base sonora das rodas de música, milongas, vaneiras, xotes, chulas e bailes de CTG.
A música é mais do que trilha: é memória. A gaita-ponto e o violão conduzem ritmos que contam histórias da fronteira, da lida e do amor à querência. Os bailes de CTG seguem regrinhas próprias de etiqueta e condução, e as invernadas artísticas — conjuntos de dança de crianças, jovens e adultos — treinam o ano inteiro para se apresentar em rodeios e festivais.
A diferença entre campo e cidade já não separa a identidade gaúcha. Há quem ande de pilcha na capital, tome chimarrão no intervalo do trabalho e ensaie dança folclórica à noite. No interior, a tecnologia já entra na rotina campeira: manejo com drones, aplicativos para gestão de rebanho e compras de insumos online. A tradição convive com o novo, e esse trânsito virou parte da narrativa.
Também cresceu a discussão sobre quem é visto — e quem ficou de fora — da história contada nos palcos. Pesquisas acadêmicas e ações culturais têm incluído com mais força a presença indígena e afro-gaúcha, fundamentais na formação dos saberes do couro, da alimentação e de ritmos musicais. Mulheres ganharam espaço nas comissões organizadoras, lideram grupos artísticos e participam de provas campeiras que antes eram exclusivas dos homens.
Há, claro, disputas sobre o que é “autêntico”. O tamanho do facón, o uso do chapéu, a barra da bombacha, a cor do lenço, a forma do churrasco — tudo isso vira conversa acalorada em rodas de mate. O ponto é que os códigos mudam com o tempo, e o que fica é a vontade de manter viva uma tradição que faz sentido para muita gente.
O impacto econômico é notável. Ferros de marcar, cuias personalizadas, roupas de pilcha, selaria, cutelaria e acessórios de prata alimentam uma cadeia produtiva própria. Restaurantes e assadores profissionais criaram negócios em torno do churrasco; escolas de dança formam instrutores; touradas de eventos, campeonatos artísticos e rodeios trazem público e renda a municípios médios e pequenos. Quando a Semana Farroupilha chega, o comércio se prepara para a alta.
No exterior, CTGs em cidades como Los Angeles e Osaka mostram que a identidade gaúcha foi na mala de quem migrou. São núcleos pequenos, mas barulhentos o suficiente para manter o sotaque, a música e o cheiro de carne assada do outro lado do mundo. Nas redes sociais, esses grupos compartilham ensaios, receitas e costumes, aproximando comunidades que antes não se falavam.
Na escola, o 20 de setembro virou tema para além da aula de história. Professores cruzam literatura, música e geografia para explicar por que o pampa tem esse vento frio, como a erva-mate ganhou espaço no cotidiano e de que forma a Revolução Farroupilha se encaixa na formação do Brasil. Alunos visitam acampamentos, assistem a ensaios de invernada e aprendem a servir um chimarrão sem entornar a cuia.
Também há cuidado com a preservação ambiental. O uso de lenha e o manejo do fogo em áreas públicas seguem normas municipais; coleta e descarte de resíduos nos acampamentos são fiscalizados; e muitas equipes já adotam materiais reutilizáveis e reciclagem. A ideia é celebrar sem deixar rastro.
Seja na arena de um rodeio, na sala de um CTG, no pátio de casa ou na beira do fogo, o que permanece é o gesto de reunir. O Dia do Gaúcho cruza memória e presente, do cavalo às redes sociais, do facón ao QR code. É tradição com os pés no chão e olhos no futuro, aberta a quem chega e teimosa no que não quer perder.
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